terça-feira, março 11, 2008

MORTE DO LEITEIRO

"MORTE DO LEITEIRO"
DESENHO DE POESIA
AST 2006

Morte do leiteiro

A Cyro Novaes

Há pouco leite no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há muita sede no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há no país uma legenda,
que ladrão se mata com tiro.
Então o moço que é leiteiro
de madrugada com sua lata
sai correndo e distribuindo
leite bom para gente ruim.
Sua lata, suas garrafas
e seus sapatos de borracha
vão dizendo aos homens no sono
que alguém acordou cedinho
e veio do último subúrbio
trazer o leite mais frio
e mais alvo da melhor vaca
para todos criarem força
na luta brava da cidade.
Na mão a garrafa branca

não tem tempo de dizer
as coisas que lhe atribuo
nem o moço leiteiro ignaro,
morados na Rua Namur,
empregado no entreposto,
com 21 anos de idade,
sabe lá o que seja impulso
de humana compreensão.
E já que tem pressa, o corpo
vai deixando à beira das casas
uma apenas mercadoria.
E como a porta dos fundos

também escondesse gente
que aspira ao pouco de leite
disponível em nosso tempo,
avancemos por esse beco,
peguemos o corredor,
depositemos o litro...
Sem fazer barulho, é claro,
que barulho nada resolve.
Meu leiteiro tão sutil

de passo maneiro e leve,
antes desliza que marcha.
É certo que algum rumor
sempre se faz: passo errado,
vaso de flor no caminho,
cão latindo por princípio,
ou um gato quizilento.
E há sempre um senhor que acorda,
resmunga e torna a dormir.
Mas este acordou em pânico

(ladrões infestam o bairro),
não quis saber de mais nada.
O revólver da gaveta
saltou para sua mão.
Ladrão? se pega com tiro.
Os tiros na madrugada
liquidaram meu leiteiro.
Se era noivo, se era virgem,
se era alegre, se era bom,
não sei,é tarde para saber.
Mas o homem perdeu o sono

de todo, e foge pra rua.
Meu Deus, matei um inocente.
Bala que mata gatuno
também serve pra furtar
a vida de nosso irmão.
Quem quiser que chame médico,
polícia não bota a mão
neste filho de meu pai.
Está salva a propriedade.
A noite geral prossegue,
a manhã custa a chegar,
mas o leiteiro
estatelado, ao relento,
perdeu a pressa que tinha.
Da garrafa estilhaçada,

no ladrilho já sereno
escorre uma coisa espessa
que é leite, sangue... não sei.
Por entre objetos confusos,
mal redimidos da noite,
duas cores se procuram,
suavemente se tocam,
amorosamente se enlaçam,
formando um terceiro tom
a que chamamos aurora.

1 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Talvez, quem sabe...nem mesmo eu nem ninguem erraria em cor este poema, com tanta vida, tanta arte esta tradaução d'uma aurora negra que é misto de sangue e leite, dando a tela um terceiro sabor, ainda que assim indefinivel, indefeso, inefável...uma sublime e eclética simbiose de luz e horror desmedido, desesperado por perder-se nos abismos do sonho, da noite passada em claro ou na escuridão do quarto em que o poeta pincelou cada verbo, cada gesto, cada ilusão do seu pobre personagem...tão discreto quanto distinto, tão inútil quanto real, tão belo e sofrido quanto o quadro pregado na parede de minha imaginação...ah!...se não fosse assim tão absurdo e estranh esse segredo a que chamam arte,não haveria razão nem sentido naqueles versos nem naquelas cores nem nessas vãs palavras que contemplam as impressões do infinito descrito em cada traço, que esconde o talento, ainda que lento ao desabrochar na tela do computador e invadir e preencher um instante e uma mémoria.

quinta-feira, abril 24, 2008 8:39:00 PM  

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