sexta-feira, agosto 18, 2006

A ETERNA IMANÊNCIA



a Idimar Boaventura,
depois de uma conversa sobre assuntos urbanos.

ao amigo e inigualável artista plástico Gabriel Ferreira
que, como Eu, traz grandes lembranças de um certo ‘João do Sonho’.

ao meu primo: Zé de ‘João do Sonho’.




– Cada um de nós tem seu bocado de saudade
preso a uma cidadezinha,
pequena e simples como uma flor,
como nosso primeiro desejo,...
sim, uma cidade toda feita de saudades,
uma cidade onde a madrugada brinca nos olhos da vida
que mais cedo recomeça
e Eu posso dizer-te que a minha
pequena cidade é esta sólida imagem que há muito
abandonou-me os sonhos
e se refugiou em algum canto escuro de minha memória,
escondendo-se e renascendo em mim
para que sejam minhas estas lembranças,
ou estes pedaços de lembranças,
espatifados sobre este homem duro que me tornei;
é esta a minha cidade toda imaginação,
esta cidade que foi real aos meus olhos,
e à minha infância:
nela, a vida vinha aos bocados
no lombo surrado dos jumentos dos aguadeiros,
um pouco na pracinha – iluminada – da igreja velha,
onde, contrariando minha fé e arrastado pelos meus desejos,
conheci meu primeiro amor e meu primeiro pecado,
e as noites traziam um pouco mais da Eternidade
quando mais alguém se juntava à roda das piculas
e o meu avô espalhava lembranças
pela aguda fumaça do cigarro de palha
enquanto meu tio
( literalmente )
vendia sonhos.

Mas hoje estou sob as cinzas destes sonhos mortos
e antigos, entoando esta plácida canção nostálgica,
e sinto sobre os ossos
a permanência indesejável do homem urbano,
do homem frio, do homem falso, do homem em ruínas
esculpido sobre meu corpo,
sobre minha alma,
sobre o que fui...

e não sei se sou Eu que sonho estas possibilidades de sonho,
esta idéia de que um sonho possa ressuscitar,
que Eu também possa reviver nesta tentativa...
Não! Não sei se sou Eu que realmente ali vivi
( ou, talvez, realmente, exista em cada um de nós
uma cidadezinha espalhando sonhos,
semeando estas lembranças que são tão boas
e tão tristes ), não sei...
não sei se são mesmo minhas estas
estas saudades ...
estas lembranças
que se perderam em meus olhos estranhos,
em meus olhos de asfalto
e vidro
e concreto
e aço...
e sei que só sinto a vida
como um trabalho vão,
um esforço devolvido
qual Sísifo num refazer constante
e,
sobretudo,
inútil.

Hoje,
estou velho e já não há cidadezinha, não há lembranças,
nem Eu...
hoje,
espero apenas poder aceitar a Morte,
mesmo sem nunca ao menos ter aceitadoa vida.


Do livro Baladas e outros aportes de viagem de Silvério Duque.
Ilutração de Gabriel Ferreira. Acrílico e carvão sobre papelão paraná. (80x99) cm. 2006