sexta-feira, agosto 18, 2006

APORTES DA SERRA DE TANQUINHO (fragmento)


ao Senhor Abílio Santa Fé Aquino; aos seus filhos, aos seus netos...

à memória do Monsenhor José Trabuco


... a subida da serra é um plágio da vida...
EURÍCO ALVES BOAVENTURA




Mas o velho Carango
não nos transmitia isso. Ele, que talvez não
dormira nunca, era agora
parte da estrada que nos parecia como
uma cobra a cortar de terra aquela caatinga
tão efemeramente viva e
cujo rastro ficava por conta das rodas
movidas pelo Burro, que, a passadas lentas,
imitava a teimosa vivência daquele verde Agreste, acentuando-se
a nossa volta e em nossas recordações.
Aquele homem, tão rude
e místico
como os lajedos
trazia uma simplicidade meiga, e acentuadamente
calma, naquele rosto que o tempo feriu
com a velhice e com a tristeza;
era a face e quem se envolveu de amor; com
a mesma crueldade com a qual o amor
envolve tudo.
Entendemos agora sua doce maldade ao permitir
nossa subida àquela carroça, para junto a ele
somarmos com as vidas
( tão diferentes, cada uma em seu extremo )
as migalhas de tempo que sumiam
como a paisagem
e cuja existência se resume a lembrança
das crianças que fomos
e trazemos à tona de nossa vida de homens adultos. Era
para não nos perdermos, não nos esquecermos
nas fotos,
nas gavetas, nas casas que fomos nós, em
nós mesmos. Dentro de nós, perdidos, estão, em algum tempo,
as vidas que, um dia, fomos nós;
muito mais mortos
do que o velho Carango e seu Burro.
Ah, como éramos vivos
quando a vida nos era mistério... E agora,
mortos,
sentimos o qual é vazia a
sabedoriados que cresceram.



Do livro Baladas e outros aportes de viagem de Silvério Duque.Ilutração de Gabriel Ferreira. Acrílico e carvão sobre papelão paraná. (80x99) cm. 2006